Que bela catraia, mestre Benjamim Moreira! Em Vila Chã, de mãos que dominam a construção naval de madeira, nasce robusta e curvilínea esta pequena embarcação de pesca já em desuso. Destinada a preservar um saber secular, e unir memórias de mar do norte e sul da Europa, será acabada na Noruega, um dos países patrocinadores do CdAN – Centro de Artes Náuticas. Conheçamos então a catraia e o seu construtor, guardião de uma arte antiga.
Catraias houve muitas na costa norte de Portugal, até ao séc. XX, mas Vila Chã, em Vila do Conde, orgulha-se de ter o seu próprio modelo, criado pelo mestre Lourenço, bisavô de Benjamim Moreira. Aos 74 anos, o bisneto mantém viva essa herança, fruto de um saber-fazer acumulado ao longo de séculos. Por exemplo, o método construtivo desta catraia decalca o “graminho” – forma de riscar o cavername (estrutura de cavernas do barco) –, descrito pelo Padre Fernando Oliveira, no final do séc. XVI, para as grandes naus da Carreira da Índia.
Na nossa visita à oficina onde está a ser construída, a catraia já mostrava as suas formas, com as várias partes do corpo unidas por encaixe. Os parafusos não fazem parte do processo. É um trabalho complexo, ainda assim, o mestre construtor insiste que “isto não é difícil”. Não segue desenhos, não faz o chamado “risco”; executa pela técnica que aprendeu e apurou.
Na conceção das cavernas, “uso as minhas formas, tenho-as há muito tempo. A partir delas, vou desenhando conforme as dimensões de embarcação que me pedem. E bate tudo certo”.
Já nem a boçarda, que amarra as partes todas do barco, garantindo-lhe resistência, precisa de riscar. “Antes riscava, mas agora sento-me num cepo e vou cavacando e moldando a peça à mão, sem medidas. É mais rápido do que está a seguir o risco”.
De forma empírica, defende a cultura local e o legado familiar, mas não lhe peçam para “fazer cópias de desenhos”. Temos, assim, uma catraia que, sendo de Vila Chã, tem a marca de Benjamim Moreira, para quem a construção naval de madeira foi amor à primeira vista.
Uma vida com arte e caráter
Benjamim Moreira perdeu a conta aos barcos que construiu. Foram muitos. Não conheceu o bisavô Lourenço, mas aprendeu a arte com o tio-avô Caseiro, conceituado mestre construtor. Ainda garoto, “ia para o estaleiro dele sempre que podia. O meu pai queria que fosse pescador, como ele, e quando tinha folga da escola acompanhava-o, mas eu gostava era da construção naval”.
Construiu o primeiro barco pelos 14, 15 anos. “Já olhava para as meninas, que me pediam para dar uma volta… Ia barquear com elas. A dada altura, o meu pai zangou-se comigo e partiu o barco. Custou-me muito, mas antigamente era assim…”
Cresceu, cumpriu o serviço militar na Guiné e emigrou para a Alemanha, onde ganhou o estatuto de especialista de carpintaria numa fábrica de móveis. “Mal se deu o 25 de Abril, voltei à minha terra.” Queria construir barcos, mas não eram tempos fáceis no setor. Preparava-se para regressar à Alemanha quando lhe pediram para arranjar duas cavernas de uma embarcação. A partir daí, somaram-se os pedidos. “E cá fiquei.”
Guardava as ferramentas na casa de mar do sogro e trabalhava na praia. Foram surgindo cada vez mais encomendas de barcos, pelo que comprou um terreno e criou o seu estaleiro. Fez embarcações para toda a costa portuguesa, França e Angola. Só não levou a sua mestria à Guiné, que lhe ficou no coração, por força dos vários golpes de estado neste país.
“Quando houve pouco que fazer, não pedi subsídios; resolvi investir na restauração [é seu o Restaurante Estaleiro]. Sempre fui independente e passei isto aos meus filhos”, diz-nos
Aos 55 anos, fechou o estaleiro. O mestre, que sempre acompanhara a evolução do setor (adaptara-se, inclusive, à construção de embarcações em fibra de vidro), não aceitou os requisitos técnicos que passaram a ser exigidos aos construtores navais. “Começaram a apertar comigo; tinha de ter o projeto do barco, feito por um engenheiro, o que ficava mais caro que o próprio barco. Aí arrumei.”
A par da restauração, foi presidente da Junta de Freguesia de Vila Chã por 12 anos, “sempre eleito por maioria”. Quanto à construção de barcos de madeira, manteve-a ao seu ritmo, sem pressões. Há 11 anos, também no âmbito de uma iniciativa com a Noruega, fez uma catraia – ao seu modo, sem seguir projeto – da qual não abdicou. Empresta-a para exposições, é bem viajada. E é uma genuína catraia de Vila Chã, entre muitas que fez, similar à aqui mostrada.
Como remata, “herdei um conhecimento, sigo-me por ele. O que aprendi no estaleiro do meu tio é o que sou hoje. Esta arte está dentro de mim. E não é uma coisa de dinheiro, mas amizade. Os donos dos barcos ficavam maravilhados com o meu trabalho, ficávamos amigos”.
Benjamim Moreira quer manter viva esta arte. Por isso abraça as propostas que lhe fazem, como esta do CdAN, e está disponível para ensinar o que sabe. Venham os interessados.
O que é uma catraia?
Com quatro a oito metros de comprimento, para levar até cinco tripulantes, é um barco de “boca aberta” (sem cobertura) movido a remo (dois maiores e dois menores) e/ou a vela triangular bastarda. O sistema de governo original é feito por um leme de cadaste. As linhas de água, ou querena, são em forma de concha, com as extremidades em V.
Feita para varar em terra (encalhar na areia), a catraia foi largamente utilizada para a pesca de sardinha, faneca e outros peixes do nosso mar. O seu uso entrou em declínio nos anos 50 do séc. XX e nos anos 90 quase deixou de ser construída em madeira. Além de passar a ser feita em fibra de vidro, sofreu alterações: a popa em bico foi apainelada para colocação de motor.
As raras catraias hoje construídas já não servem a pesca, antes permitem manter viva a sua memória e a cultura da construção naval de madeira.
Segundo o arquiteto, etnógrafo e arqueólogo Octávio Lixa Felgueiras (1922- 96), este tipo de barco terá uma ascendência nórdica, apesar de construído por processos mediterrânicos. Um aspeto que permitirá estabelecer uma interessante ponte com a Noruega, país também com tradição na construção de barcos de madeira.
Há barco novo? Venham as tradições
A importância de um nome. É tradição um barco ter nome e batismo. Benjamim Moreira deu nome a quase todos que construiu. “Andam ainda por Vila Chã e noutros locais, como Angeiras, barcos com o nome que sugeri”, conta, dando como exemplo Deus que me guie.
O bota-abaixo de uma embarcação. Ou o batismo. O padre pode ou não estar presente, “mas são os construtores navais que fazem o batismo”, conta o mestre. A cerimónia começa no estaleiro, com champanhe, e prossegue na praia, “com comes e bebes dentro do barco. As pessoas andam à volta dele e todos confraternizam”.
Parte-se uma garrafa contra o barco? Com certeza. “Os construtores dizem uma reza e benzem o barco com vinho tinto. Quase sempre, os pescadores querem beber dessa garrafa, que tem de ser de vinho carrascão, que tinge o barco”, assinala Benjamim Moreira.