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Samuel &
Filhos

By 11 de Março, 2024Abril 29th, 2024No Comments

Samuel & Filhos: onde a História é recriada na perfeição

A construção em madeira de réplicas históricas é uma das área de especialização dos estaleiros navais Samuel & Filhos – que está a reabilitar a Nau Quinhentista de Vila do Conde, por si construída e fundeada no rio Ave desde 2007 –, mas a perícia é uma marca indelével nos demais projetos saídos do seu estaleiro.

Nau Quinhentista de Vila do Conde, caravelas Bartolomeu Dias (África do Sul), Boa Esperança (Algarve) e Vera Cruz (Lisboa), rabelos e outros barcos típicos – o portfólio de réplicas de embarcações históricas dos estaleiros navais Samuel & Filhos é extraordinário. Expõe um know-how que responde aos grandes desafios da construção naval de madeira. A par destes projetos de exceção, o saber-fazer acompanha a atividade regular do estaleiro, atualmente dedicado à manutenção de barcos de pesca e turismo.

Fundada, em 1935, por Samuel Fernandes do Carmo, herdeiro da experiência e da técnica desta arte secular, a empresa nunca saiu da esfera familiar. Após um interregno originado pela Segunda Grande Guerra Mundial, foi reerguida em 1948, agora com o envolvimento dos filhos do fundador, António e Francisco Gonçalves do Carmo. Hoje, à frente do leme estão Samuel Carmo, filho de Francisco e José Manuel Carmo, filho de António. Este último, fala-nos de um negócio feito de paixão e resiliência.

Por ano, é feita a manutenção de “uns 50 barcos, nacionais e estrangeiros. Agora temos muito serviço de madeira para embarcações do Douro”, por onde navegam rabelos adaptados para o turismo.

O tempo em que se trabalhava em cima da rua

Que as embarcações de madeira de Vila do Conde são de alto gabarito, já sabemos, mas aqui o termo tem outro significado. E atrás de um vocábulo vem outro…

Quase não existiam sistemas de elevação e transporte. Havia já meios mecânicos para a indústria, “mas as travessas para os barcos deslizarem impediam a sua utilização”. Mais, o charriot de serração e o parque de madeiras ficavam a um quilómetro do estaleiro: “Os toros para serrar eram levados num carrelo de rodas maciças em madeira, puxado por uns vinte homens. Depois de serrados, eram transportados às costas novamente para o parque. Íamos pela estrada com os aprendizes, passavam pessoas que nos gozavam…”

Mesmo em condições “do tempo dos romanos”, como brinca o responsável, a empresa construía 12 barcos de pesca em simultâneo, metade deles de 30 metros.

“Os toros para serrar eram levados num carrelo de rodas maciças em madeira, puxado por uns vinte homens. Depois de serrados, eram transportados às costas novamente para o parque. Íamos pela estrada com os aprendizes, passavam pessoas que nos gozavam…”

A transferência dos estaleiros para um espaço melhor era uma reivindicação antiga, mas foi ainda nas velhas instalações que os estaleiros Samuel & Filhos se especializaram na construção de réplicas de embarcações antigas, construindo as duas primeiras caravelas. “Foram feitas exatamente como nos Descobrimentos. Só o guincho era a diesel, em vez de manual. Temo-lo em exposição.”

O orgulho de quem sabe fazer bem

No arranque do milénio, a construção da Nau Quinhentista representou um trabalho hercúleo levado a bom porto. “Foi o barco de maior tonelagem que fizemos e um desafio diário”, recorda José Manuel Carmo. Respeitando a pesquisa histórica realizada pelo almirante Rogério d’ Oliveira – “um extraordinário projetista”, envolvido também na conceção das três caravelas –, coube à Samuel & Filhos criar uma série de soluções.

“Tivemos de pensar como fazer várias peças, tais como os aros do painel [vértices dos dois lados da poupa], a ré, todo o tabuado em espinha… E o barco é tão redondo que não era possível vergar as tábuas. Cada tábua que se vê na Nau, entre a linha de água e o primeiro castelo, foi tirada uma a uma à grossura de toros enormes de madeira.”

Porque em Portugal “não se arranja pinheiro manso de grandes dimensões”, optou-se por madeiras exóticas, mogno e câmbala. Além dos toros serem “de muito maior porte, oferecem mais garantias de durabilidade”.

O responsável pelo estaleiro fala de homens com um conhecimento apreendido pela prática, ensinado pelos mais velhos. “Joaquim Marques, Albino Rocha, Manuel Andrade, Joaquim Gomes, Zé Gomes; o Alcino, o Arlindo… foram os nossos operários mais antigos, alguns do tempo do meu avô, que deram formação aos mais novos.”

Aos carpinteiros navais e demais especialistas envolvidos na construção de embarcações antigas, a qualidade final dos projetos trouxe um “orgulho enorme”.

O responsável pelo estaleiro fala de homens com um conhecimento apreendido pela prática, ensinado pelos mais velhos. “Joaquim Marques, Albino Rocha, Manuel Andrade, Joaquim Gomes, Zé Gomes; o Alcino, o Arlindo… foram os nossos operários mais antigos, alguns do tempo do meu avô, que deram formação aos mais novos.”

Hoje, os artífices no ativo são talentos raros e “polivalentes. Antes havia encarregados que só geriam o barco, carpinteiros navais e carpinteiros de ‘limpo’ [marceneiros de interiores] focados na sua especialidade, calafates que só calafetavam. Hoje todos fazem o que é preciso, conforme o trabalho que há. Caso contrário, era impossível ter a atividade aberta”.

Venham novos talentos e muito mais será feito

“Temos clientes, mas falta pessoal para respondermos a tudo o que nos pedem. Há mercado, mas escasseiam os recursos humanos. Os bons profissionais vão-se reformando e não há quem os substitua. É um trabalho bem pago, mas duro” – desabafa José Manuel Carmo, que vê esta carência como a grande ameaça ao futuro da indústria de construção naval em madeira. A falta de mão-de-obra qualificada é uma realidade, razão por que o investimento na formação é uma prioridade do CdAN.

No presente, nos estaleiros Samuel & Filhos, é inviável pensar em nova construção quando não há pessoal para satisfazer todos os pedidos de reparação de barcos. A situação, aliada à falta de espaço para manter duas linhas de produção, uma votada à construção e outra à reparação, faz com que prevaleça esta segunda vertente da atividade. “Temos possibilidade de construir, mas teríamos que abdicar da manutenção, que nos custou muito a conquistar.”

“Temos clientes, mas falta pessoal para respondermos a tudo o que nos pedem. Há mercado, mas escasseiam os recursos humanos. Os bons profissionais vão-se reformando e não há quem os substitua. É um trabalho bem pago, mas duro” – desabafa José Manuel Carmo

Por ano, é feita a manutenção de “uns 50 barcos, nacionais e estrangeiros (de armadores portugueses com sociedades mistas em África, nomeadamente na Mauritânia). Agora temos muito serviço de madeira para embarcações do Douro”, por onde navegam rabelos adaptados para o turismo. São barcos sujeitos a um desgaste: a água doce apodrece as tábuas e com as altas temperaturas no Douro interior “a madeira coze completamente”.

A par do turismo fluvial, este estaleiro com quase 90 anos de história, um dos três a operar na Azurara, faz a manutenção de todo o tipo de embarcações de pesca, em particular da sardinha e com redes de emalhar.

Atualmente, os seus profissionais têm em mãos um projeto especial e que os enche de orgulho: estão a restaurar a Nau Quinhentista de Vila de Conde, in situ, para lhe devolver todo o seu esplendor.