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Irmãos
Viana

By 15 de Março, 2024Abril 29th, 2024No Comments

Irmãos Viana: amor à arte em todos os projetos

Há quase 50 anos, os irmãos José e António Viana, filhos e netos de pescadores, inscreveram o nome da família na indústria da construção naval em madeira. No seu estaleiro, especializado na construção e recuperação de embarcações em madeira, o amor à arte continua a manifestar-se. Connosco, o mestre José Viana partilha histórias e projetos. Tanto num barco de muitos metros como numa embarcação replicada em escala reduzida, transportável à mão, percebe-se o profundo conhecimento e o absoluto rigor de execução.

Associado ao conjunto de estaleiros de Vila do Conde, o dos irmãos Viana tem a particularidade de ser o único sediado no Porto de Pesca da Póvoa de Varzim, apesar que ainda pertencente ao concelho de Vila do Conde. É também o único a manter uma carreira de encalhe tradicional, uma memória viva digna de ser descoberta, ainda que pelas suas dimensões impeça a docagem de barcos de maior porte.

Há quase 50 anos, os irmãos José e António Viana, filhos e netos de pescadores, inscreveram o nome da família na indústria da construção naval em madeira. No seu estaleiro, especializado na construção e reparação de embarcações em madeira, o amor à arte continua a manifestar-se.

Nas primeiras décadas de atividade, a empresa chegou a ter 25 funcionários. Sobretudo na época do defeso, quando os barcos de pesca ficavam em terra, havia “muito trabalho de reparação”, salienta José Viana, o que não impedia a construção de “duas ou três embarcações por ano”. O último construído, há 19 anos, ainda está no ativo.

Por 2003, com o corte na emissão de licenças para construção de barcos de pesca e a redução da procura de embarcações de madeira, o serviço foi decaindo. “Hoje trabalho eu, o meu irmão e o meu afilhado”. Poucos, mas bons, pode afirmar-se. E a porta continua aberta: “Fazemos qualquer tipo de manutenção de barcos de madeira. Se aparecer um para construir, construímos.”

O mestre construtor que domina o projeto

Perdeu-se talvez um engenheiro, ganhámos um mestre construtor que domina este saber-fazer como poucos. Aprendeu pela prática e pela “catrefada de livros” que foi adquirindo. Aliás, nunca parou de investir na aprendizagem, ao seu modo: “Hoje, para mim isto é fácil. Consigo desvendar todos os segredos da minha profissão, o que não quer dizer que sei tudo – ainda tenho muito que aprender. E quero sempre ir mais além. Gosto de desafios.”

Na história desta empresa familiar está o percurso de vida de José Viana. Concluído o ensino primário, viu-se impedido de continuar a estudar. Quem nasceu pescador nunca será doutor, dizia o pai. Apesar do vaticínio, criou o seu próprio destino. Aos 11 anos encetou o ofício de carpinteiro na construção civil, mas o sonho era outro: queria a carpintaria naval.

“Tinha 14 quando pedi ao mestre Samuel [fundador do estaleiro Samuel & Filhos] para me empregar como aprendiz”, conta. Aí absorveu tudo o que podia: “Ao fim de três anos, já sabia galivar; toda a criação da ossada das embarcações já passava pelas minhas mãos.”

Com esta bagagem de conhecimento, aos 17 foi para Moçambique, onde um ano depois se estabeleceu como construtor naval. Neste país cumpriu o serviço militar, no regimento de Engenharia, sendo desafiado pelos oficiais para voltar a estudar. Mas não lhe sobrava tempo. Além disso, “sabia o que queria: esta arte. Era ainda muito verde, mas entrando trabalho tinha que o fazer”. No início de 1970 montou o seu estaleiro em Lourenço Marques, hoje Maputo.

Com a descolonização portuguesa, voltou à terra de nascença. “Larguei o que tinha em Moçambique e regressei para começar tudo de novo, sempre com o intuito de trabalhar por conta própria. Com o meu irmão montei este estaleiro”.

Perdeu-se talvez um engenheiro, ganhámos um mestre construtor que domina este saber- fazer como poucos. Aprendeu pela prática e pela “catrefada de livros” que foi adquirindo. Aliás, nunca parou de investir na aprendizagem, ao seu modo: “Hoje, para mim isto é fácil. Consigo desvendar todos os segredos da minha profissão, o que não quer dizer que sei tudo – ainda tenho muito que aprender. E quero sempre ir mais além. Gosto de desafios.”

Com esta visão, advoga que a carpintaria naval “demora a aprender. Agora, quem vem para esta arte acha que num ano sabe tudo – e sabe nada! Um bom carpinteiro demora oito a nove anos a formar-se”. Se quiser ser um profissional da estirpe de José Viana, que há muito sabe projetar e fazer o risco do barco, de mais tempo precisará.

Sempre desenvolveu os projetos das embarcações que construiu. O seu trabalho, quando vistoriado, nunca apresentou erros. Quanto a riscar e compor as peças, ouvindo-se o mestre, o que é complexo até parece simples. Veja-se o caso de criação do cavername:

“Leva tempo a fazer as formas, mas depois bate tudo certo. Com a forma, e pela grade, fazemos a peça galivada. A seguir é só casar tudo. Quando se vai armar a embarcação, quase não é preciso afagar o cavername; no máximo, dá-se uma ‘chora’, ou seja, passa-se a lixa porque às vezes a madeira com o tempo alteia, não porque haja um encaixe mal feito.”

Cada barco fica na memória

Todas as embarcações construídas ou que beneficiam de um restauro marcante “ficam no coração. São um pedaço de nós” – afirma o mestre Viana. São muitas as memórias e histórias que fazem parte deste estaleiro. Conheçamos duas.

Corriam os anos 80 quando a “Três Sorrisos” embateu nos penedos do Castelo do Queijo, no Porto. Sem poder navegar, esta embarcação de 16 metros, da comunidade piscatória de Caxinas, teve de ser transportada de camião para o estaleiro. “Fomos buscá- la à meia-noite e só chegámos cá às seis da manhã”; à conta de vários percalços. O transporte, diga-se, foi realizado de noite já para se evitar o trânsito, era tudo menos normal um barco daquela dimensão andar pela estrada.

Todas as embarcações construídas ou que beneficiam de um restauro marcante “ficam no coração. São um pedaço de nós” – afirma o mestre Viana. São muitas as memórias e histórias que fazem parte deste estaleiro.

Na viagem somaram-se as peripécias, desde passagens apertadíssimas (houve mesmo um “toque” na casa do próprio armador) até uma rua cortada devido a obras de saneamento. “Estava aberto um buraco enorme. Pedimos por tudo aos trabalhadores para o taparem de algum modo para passarmos, caso contrário, teríamos de dar uma volta muito maior e passar por locais muito estreitos…” – recorda o mestre.

O “Três Sorrisos” chegou ao estaleiro cheio de areia. “Só para o limpar, demorámos uma semana.” A reparação, complexa, correu bem. Tão bem que o dono do barco encomendou a seguir aos dois irmãos uma embarcação coberta de 20 metros.

A criação de laços com os clientes está patente também na história do “Ki Jung” barco de pesca pedido por um casal estrangeiro a viver em Torres Vedras, ele holandês e ela sul- coreana. Era um nome estranho, que ainda demorou a ser legalmente aprovado. Foi preciso indicar o que significava: “sol nascente” na língua materna da coproprietária.

O “Ki Jung”, a operar em Peniche, voltava ao estaleiro para a manutenção, e com ele os donos. Um dia jantaram na casa de José Viana. A senhora apresentou-se de traje tradicional do seu país, a filha do mestre vestiu-se de “mordoma”, traje típico de Viana, a terra da mãe.

Do restauro do “Cego de Maio” às miniaturas… e uma prancha de surf

…o restauro do salva-vidas “Cego de Maio”, barco centenário exposto no Museu Municipal da Póvoa de Varzim. O processo de recuperação no próprio local, iniciado em 2018 e concluído em março de 2019, foi assumido pelo mestre Viana. Pesquisou, fez o projeto da embarcação (“que não existia”) e ao longo de sete meses reabilitou-a sob o olhar atento dos visitantes do museu, a quem explicava as suas técnicas.

Está para breve o lançamento do livro sobre o restauro do salva-vidas “Cego de Maio”, barco centenário exposto no Museu Municipal da Póvoa de Varzim. O processo de recuperação no próprio local, iniciado em 2018 e concluído em março de 2019, foi assumido pelo mestre Viana. Pesquisou, fez o projeto da embarcação (“que não existia”) e ao longo de sete meses reabilitou-a sob o olhar atento dos visitantes do museu, a quem explicava as suas técnicas. Mais, fez questão de deixar a nomenclatura de todas as peças, para que o saber não se perca.

O restauro do “Cego de Maio” é mais uma prova do exímio talento do mestre, que também se dedica a criar barcos tradicionais e antigos em escala reduzida. É dele a réplica em escala reduzida da Nau Quinhentista de Vila de Conde exposta na Alfândega Régia e de outras embarcações que contam a história da construção naval em madeira.

No que faz, José Viana aprecia o desafio de ter de investigar, criar soluções a adotar as técnicas necessárias. De tal modo que quando um grupo de alunos de uma escola secundária de Leça da Palmeira, em Matosinhos, lhe pediu em 2023 para fazer uma prancha de surf de madeira – para um projeto de empreendedorismo –, o mestre nem hesitou. “Disse logo que sim. Pedi a um dos miúdos a prancha dele para tirar medidas. Não consegui arranjar a madeira ideal, que teria de vir do Brasil, por isso fi-la em pinho leve. Se virar no mar, não afunda.” Sendo obra de quem é, jamais suporíamos o contrário…