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Pessoas

António José
Carmo

By 3 de Maio, 2024No Comments

“A carpintaria naval dá um conhecimento polivalente, permite responder aos desafios de outras artes, outras atividades”

António José Carmo trabalhou cerca de 30 anos nos estaleiros da família, Samuel & Filhos, como desenhador projetista. Conhecedor profundo da construção naval de madeira, tem dado um valioso contributo na divulgação desta arte: entre outros projetos, descodificou em desenho o método construtivo descrito no “Livro Fábrica das Naus” (século XVI). Como investigador e formador do CdAN, fala-nos da polivalência que dá o domínio da carpintaria naval, aplicável em múltiplas áreas. Uma conversa de paixão e conhecimento, que nos revela perspetivas surpreendentes e mostra a pertinência do novo Centro de Formação da Construção Naval de Madeira

Uma conversa de paixão e conhecimento, que nos revela perspetivas surpreendentes e mostra a pertinência do novo Centro de Formação da Construção Naval de Madeira.

Está bastante ligado ao projeto do Centro de Artes Náuticas. O que o motiva?

Dar continuidade à construção naval de madeira, transmitir o conhecimento que há nos nossos estaleiros.

O sentimento que existe da parte de todos os envolvidos neste projeto é de que o fim do setor seria uma grande perda, não só para a indústria em si, mas também para outras atividades, nomeadamente a pesca. E perder-se-iam várias potencialidades, porque este saber-fazer permite responder a necessidades noutras artes, noutras áreas.

O que dá ao conhecimento da construção naval de madeira um caráter polivalente, diferentes possibilidades de aplicação prática?

A carpinteira naval absorve um tipo de conhecimento geométrico que obriga a uma ginástica mental e a uma forma distinta de pensar as coisas em termos construtivos. Isto leva os carpinteiros navais a desenvolverem faculdades próprias: pensar como é que a construção se vai iniciar, qual o desenho que vai seguir, como se vai desenvolver e como vai acabar.

Quem estiver preparado para fazer um barco de madeira, está preparado para fazer um barco de qualquer tipo de material. É muito mais fácil de construir em aço ou alumínio do que em madeira. Já um estaleiro de aço não é capaz de construir um barco de madeira.

Esta destreza permite aos carpinteiros navais executarem qualquer tipo de peça.
Olham para um desenho em 2D e imaginam-no em 3D, sabem qual a melhor
forma de o executar.

Ou seja, um carpinteiro naval é capaz de responder a desafios diversos que, à primeira impressão, não seriam entregues a estaleiros de construção de madeira?

Sim. Neste momento, por exemplo, está em curso o desenvolvimento de uma obra de arte monumental, em aço, para Sevilha. Aliás, é a segunda para esta cidade espanhola: primeiro foi o caroço de azeitona gigante, já instalado numa rotunda da região, e agora o chifre de um touro de 20 toneladas. É uma peça completamente curva, toda ela torta, torcida, e o molde está a ser feito por carpinteiros navais. São eles que têm aptidão para executar qualquer molde: tal como o deste chifre, uma peça com deformações, que tem diâmetros diferentes.

Tal como um barco…

Exato. Com a facilidade com que executa o costado de um barco, o carpinteiro naval é capaz de executar aquela superfície exterior, aquele chifre. É uma estrutura enorme em aço, mas só aqui se encontrou quem fosse capaz de executar o molde. Foi a indústria tradicional de Vila do Conde – no caso, o estaleiro SICNAVE – que resolveu o problema.

Para mim é uma satisfação ver alguém que consegue adaptar a formas de arte o conhecimento adquirido na construção naval de madeira.

Trata-se de um conhecimento empírico, acumulado ao longo da história, que está dentro dos estaleiros de Vila do Conde.

Costumo dizer que o barco em madeira é uma das peças mais evoluídas que existe. Os nossos barcos de madeira atuais têm seis mil anos de evolução em cima. Ora este conhecimento tem de ser transmitido – e este é o principal objetivo do novo Centro de Formação, onde vamos ensinar passo a passo a técnica da construção naval de madeira.

Pessoalmente, preciso ensinar o que sei, e que está nas mãos de 13 escassas pessoas, todas mais velhas do que eu. É preciso transmitir, seja a quem for.

o barco em madeira é uma das peças mais evoluídas que existe. Os nossos barcos de madeira atuais têm seis mil anos de evolução em cima. Ora este conhecimento tem de ser transmitido – e este é o principal objetivo do novo Centro de Formação

Estamos a falar de que conceito de formação?

O conhecimento científico virá depois – a nossa principal função, agora, como últimos conhecedores deste saber-fazer, é passá-lo tal como é passado num estaleiro: de mestre para aprendiz.

Esta transmissão não é fácil, estou ciente disso. Estamos regidos por fórmulas geométricas que não são ensinadas em sítio nenhum. Ou seja, é uma geometria executada por pessoas que não sabem matemática científica, que têm uma matemática empírica, a chamada tecnomatemática, passada de geração em geração. No entanto, conseguem resolver desafios que mais ninguém consegue resolver. Têm uma carga de conhecimento ancestral muito grande, onde a tentativa e a resolução do erro é o que impera.

O conhecimento científico virá depois – a nossa principal função, agora, como últimos conhecedores deste saber-fazer, é passá-lo tal como é passado num estaleiro: de mestre para aprendiz.

Os formandos poderão esperar, então, um curso prático?

Bastante prático. Nos últimos 30, 35 anos foram feitos alguns cursos de carpintaria naval, mas muito teóricos, sem aulas práticas. Vamos ter uma secção de um barco real (cerca de 3, 4 metros) dentro da oficina, com várias peças pré- montadas, e cada vez que se ensina um grupo vamos construir uma caverna, a partir da sala do risco, para posterior montagem. Vamos colecionando as peças, executar algumas das mais difíceis que se fazem nos barcos, e que têm um processo próprio de execução geométrica, uma forma própria de executar o molde.

E vamos perceber como um carpinteiro naval é capaz de deduzir qual a peça necessária e fazer qualquer molde sem usar medidas convencionais, sem fita métrica: todas as bitolas são conseguidas com fasquia [na tradição local, uma tábua de madeira maleável], compasso e suta.

Tal como antigamente se usava um cordel para tirar medidas, usamos fasquias de madeira. Já a suta dá-nos os ângulos. Não sabemos o ângulo exato, apenas se tem mais ou menos de 90 graus. Designamos o ângulo obtuso de “cheio”, o agudo de “solinhado”.

Bastante prático. Nos últimos 30, 35 anos foram feitos alguns cursos de carpintaria naval, mas muito teóricos, sem aulas práticas. Vamos ter uma secção de um barco real (cerca de 3, 4 metros) dentro da oficina

A partir daqui a carpintaria naval presta-se a muitas aplicações. Podemos dar mais exemplos?

Ainda há dias estive com um senhor de Vila do Conde, já reformado, que fez sucesso na Alemanha e na França por saber executar – graças aos seus conhecimentos de carpintaria naval – os projetos de arquitetos. Ou seja, tinha uma visão, que faltava aos outros, para resolver todas as obras de arte que os arquitetos desenhavam. O seu know-how foi de tal modo reconhecido que durante anos foi responsável pelo restauro de madeiras do Museu do Louvre. Este é um bom exemplo das capacidades que a construção naval de madeira permite adquirir. Por isso os nossos estaleiros executam obras para Servilha…

Mas este conhecimento abre muitas outras oportunidades. Dentro do contexto natural da indústria, por exemplo, capacita os seus profissionais para a construção de embarcações de recreio de luxo, tal como as realizadas em estaleiros de Itália, Canadá, Estados Unidos. Estamos a falar de uma construção naval muitíssimo apurada, obras de arte de madeira que servem para flutuar. A exigência é de tal ordem que, entre 10 ou 15 carpinteiros navais, 2 ou 3 são capazes de executar com essa perfeição. E eu conheci alguns, aqui em Vila do Conde.

A arqueologia subaquática é outro campo de aplicação deste conhecimento.

Sem dúvida. Faço parte da equipa de estudo, associada à UNESCO, do achado do barco de Belinho, e conheço alguns dos maiores catedráticos arqueólogos subaquáticos do mundo. Estando entre arqueólogos conceituados, alguns com 40 anos de atividade, sei o que eles não sabem: as peças com que a embarcação foi construída. E não sou o único: se levar ao sítio e mostrar algumas peças ao antigo encarregado do nosso estaleiro [Samuel & Filhos], ele identifica-as logo. Esta é também uma valência para quem souber de construção naval: saber ler um achado arqueológico subaquático, reconhecer as peças encontradas.

Peças que um carpinteiro naval atual também constrói…

No século XVI faziam-se naus e caravelas, agora fazem-se traineiras, mas o processo construtivo é muito idêntico, as peças dentro de um barco são praticamente iguais.

A propósito, o que há séculos nos tornou tão fortes na indústria naval?

Nós estivemos sob a abrangência de duas fontes tecnológicas muito eficazes: uma de países nórdicos e outra mediterrânica, esta com mais séculos de evolução.

Nos séculos XIII, XIV, os portugueses, em particular do norte do país, fundiram técnicas. Ou seja, fomos pioneiros na junção dos dois conhecimentos, graças à nossa posição geográfica: estávamos entre culturas diferentes – o mundo islâmico e o nórdico. A facilidade de contacto com ambos tornou-nos polivalentes e deu-nos capacidade para inovar: associámos à arquitetura nórdica o processo construtivo mediterrânico. Passou-se a construir o barco não de fora para dentro (na coga nórdica, primeiro faz-se o costado), mas de dentro para fora (primeiro a quilha, o cadastro e a roda de proa, o cavername em cima da quilha e só depois o revestimento com tábuas, o costado).

Nos séculos XIII, XIV, os portugueses, em particular do norte do país, fundiram técnicas. Ou seja, fomos pioneiros na junção dos dois conhecimentos, graças à nossa posição geográfica: estávamos entre culturas diferentes – o mundo islâmico e o nórdico. A facilidade de contacto com ambos tornou-nos polivalentes e deu-nos capacidade para inovar

Qual foi a grande vantagem dessa evolução?

Veio permitir alterar as linhas de água do barco; a configuração da carena passou a poder ser manipulada. Na construção nórdica não é possível alterá-la – tem a forma de concha, só pode crescer proporcionalmente.

Com a manipulação da carena, tornou-se possível afiar o barco, fazer mais saídas de água, adaptá-lo aos objetivos a que se destinava. Ora o fim da nau portuguesa era fazer grandes viagens, nomeadamente, de São Tomé e Príncipe aos Países Baixos. Para o efeito, precisava de ser mais rápida a navegar e bolinar melhor. Modificando as linhas do barco, ele tornou-se mais “bolineiro”. O fundo é mais em lâmina, não tem tanto caimento. Vai mais alinhado. Isto mudou tudo.

Hoje, os estaleiros de Vila do Conde fazem, essencialmente, a manutenção de barcos de pesca, não a construção. Um dos motivos é a falta de mão de obra.

Essa é a realidade dos estaleiros, onde os bons carpinteiros, os bons executantes já têm mais de 60 anos. Não podem reformar-se porque são necessários.

Essa é a realidade dos estaleiros, onde os bons carpinteiros, os bons executantes já têm mais de 60 anos. Não podem reformar-se porque são necessários.

No entanto, é um trabalho bem pago.

É pago bastante acima da média. Mesmo assim, não está a aliciar os jovens. Porquê? No seio da família ou em ambiente de fábrica, não se está a transmitir esta arte aos jovens – e ainda bem, é sinal de que eles estão a estudar. O problema é que as escolas estão, a meu ver, num caminho desajustado. O ensino técnico não é estimulado.

Criada esta realidade, o que vai acontecer? Daqui a não muitos anos, quem souber trabalhar com as mãos, seja em que área for, será pago a peso de ouro. Já é assim e vai ser ainda mais, por falta de escassez de mão de obra.

Daqui a não muitos anos, quem souber trabalhar com as mãos, seja em que área for, será pago a peso de ouro. Já é assim e vai ser ainda mais, por falta de escassez de mão de obra.

É urgente formar novos talentos. Além do óbvio, que mais-valias ganha quem faça o curso de carpintaria naval do Centro de Formação da Construção Naval de Madeira?

Vai adquirir uma quantidade de informação que lhe será muito útil nas situações mais diversas. Vai ser capaz de responder a desafios de negócios de distintas áreas, como já vimos. Vai desenvolver uma capacidade de entendimento de geometria de uma forma que não é ensinada nas escolas – uma geometria totalmente diferente, que entusiasma qualquer um. Como é que pessoas com a 4.ª classe antiga conseguem fazer um plano geométrico do barco, algo de uma complexidade enorme?

Não tenho dúvida alguma, os jovens que se dedicarem a este curso vão ficar com um conhecimento prático avançado, polivalente, que lhes dará mais-valias, mais saídas profissionais e perspetivas que não têm atualmente.

Não tenho dúvida alguma, os jovens que se dedicarem a este curso vão ficar com um conhecimento prático avançado, polivalente, que lhes dará mais-valias, mais saídas profissionais e perspetivas que não têm atualmente.